domingo, 24 de fevereiro de 2013

SBPC: como o Clima Global e o Balanço de Carbono desapareceram entre o Código Florestal e Pré-Sal

O Brasil, segundo dados do próprio governo, detém 516 milhões de hectares de florestas. É uma área bastante generosa, bem maior do que os 24,2 milhões de hectares, segundo a Empraba, que temos de soja plantada em nosso território (na verdade, 21,3 vezes maior, para ser exato). A produtividade da soja, segundo a Embrapa, no mesmo site, é 3106 kg/ha (quilogramas por hectare) e a cotação da soja, segundo o insuspeito site "Notícias Agrícolas", gira em torno de R$ 1000,00 por tonelada, ou seja uma relação de um para um entre real e quilograma.

Uma conta que pode ser feita (e deve, para assustar) é: extrapolando esses valores, admitindo que toda a área de floresta no Brasil fosse substituída por plantação de soja, quais as cifras (ou melhor, cifrões) a que chegaríamos? Vamos lá... Multiplicando R$ 3106,00/ha por 516 milhões de hectares, e usando a cotação de U$ 1 = R$ 1,97 chegamos à marca de U$ 814 bilhões, o equivalente a mais de um terço do PIB brasileiro, de U$ 2,3 trilhões. A cada safra. A cada ano. Um PIB inteiro a cada três anos! Mas guardemos esse resultado... Claro, para escaparmos do argumento de que uma oferta muito grande da soja derrubaria seu preço nos mercados internacionais, se poderia pensar em devastar "apenas" 10% das florestas e faturar com a soja durante 30 anos...

A SBPC evidentemente responderia
com uma negativa à pergunta "É
justificável devastar ainda mais
nossas florestas, a fim de aumentar
a área de soja plantada?
No entanto, é óbvio que nem o mais tresloucado dos ruralistas defenderia que, independente dos impactos sobre o ambiente, o clima e a biodiversidade, se fizesse essa operação, ou seja, tratores, correntões e queimadas devastarem a Amazônia e demais florestas nacionais para dar lugar à soja. O que vocês diriam se alguém ousasse dizer algo como "o Brasil não pode perder a oportunidade de substituir as florestas por plantações e nem de utilizar os recusos da soja colhida nessa área imensa para investir em educação e em pesquisas científicas e tecnológicas"? Sabemos que a SBPC jamais defenderia que arrancássemos 51,6 milhões de hectares de florestas com o objetivo de triplicar a área plantada de soja em território nacional (opinião que possivelmente fosse até defendida por algum "especialista" com proximidade com o agronegócio). Afinal, capitaneou um estudo interdisciplinar de fôlego em que subsidiou a discussão sobre o Código Florestal, mostrando a necessidade de conter o desmatamento, inclusive argumentando, corretamente, em relação aos impactos no balanço de carbono ("Quando desmatados, [os solos] deixam de sequestrar carbono") e no clima ("o desmatamento continuado tem sido associado a alterações preocupantes no regime de chuvas")! 

Tenho certeza de que ninguém se sensibilizaria para essa proposta de avançar sobre as florestas, ainda que alguém lançasse mão do discurso ufanista de que "a exploração da área da Amazônia representa uma janela de oportunidades para o Brasil figurar como o maior produtor de soja do mundo, tornando-se um dos 'pelotões' de frente da Organização dos Países Exportadores de Soja" (caso esta existisse) e que "nos últimos anos, o país passou para a 2ª posição no ranking dos produtores de soja, conforme o relatório 'Soystats' da American Soybean Association".

Pois bem, o balanço de carbono e o clima, que mereceram defesa quando do debate sobre o Código Florestal são solenemente esquecidos quando se trata de discutir a exploração do pré-sal... Sem mencionar explicitamente à carta que enviei à sua Diretoria, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência pareceu dar uma resposta a ela, na edição do Jornal da Ciência de 15/02, que explicita um duplipensar lastimável.

É uma matéria à primeira vista bem construída, em sua forma, mas que não resiste a uma segunda leitura. Em seu título, refere-se a "especialistas" de maneira genérica, mas logo fica claro que são especialistas tão somente em exploração de petróleo, especificamente "pesquisadores da área de petróleo do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ), da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP)".

É evidente que uma temática que se ramifica por diversas áreas do conhecimento, incluindo o clima em escala global, o ambiente e ecossistema oceânicos, a economia e a governança, etc., não poderia ser liquidada com opiniões que são repletas de viés. Tal viés, porém, aparece disfarçado e blindado pela reportagem, em trechos como "pesquisadores avaliam que o Brasil não pode renunciar...", quando se sabe não se tratar de pesquisadores "em geral", mas de um setor bastante específico, cuja visão evidentemente tende a ser mais unilateral, pois para além do financiamento à pesquisa, se vincula histórica, e até emocionalmente à investigação da tecnologia em petróleo.  

Um dos trechos afirma que "o Brasil não pode perder a oportunidade de explorar o pré-sal e nem de utilizar os royalties do petróleo extraído dessa camada profunda para investir em educação e em pesquisas científicas e tecnológicas", o que não necessariamente é verdade. Escolhas podem ser feitas e é preciso, nessas escolhas, pesar se realmente há benefícios que possam ser justificados, não somente a curto prazo, mas a médio e longo prazo. O que pretendo mostrar adiante é que da mesma forma que não se pode sacrificar a biodiversidade amazônica e as florestas em nome dos recursos da soja ou de outra cultura ligada ao agronegócio para exportação, é não só possível como é desejável para o Brasil e para o mundo que nosso país não utilize o pré-sal, que o Canadá não explore suas areias betuminosas, que os EUA não explorem o gás de xisto, que China e Austrália não utilizem suas reservas de carvão e que nenhuma corporação ou nação explore o petróleo do Ártico.

Mais adiante, diz-se que "A exploração do pré-sal representa uma janela de oportunidades para o Brasil figurar entre os maiores produtores de petróleo do mundo, tornando-se um dos 'pelotões' de frente da Organização dos Países Exportadores de Petróleo". Ora, quais são esses países? A exploração de petróleo para exportação em algum momento lhes assegurou "desenvolvimento" e bem-estar para a maioria de sua população? Trata-se evidentemente de um apelo vulgar ao chauvinismo nacional, pois para quem não sabe, os membros da OPEP (Angola, Argélia, Líbia, Nigéria, Venezuela, Equador, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Irã, Iraque, Kuwait, Catar, tendo o Gabão e a Indonésia como ex-membros) em sua maioria, no que tange aos seus Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) e Índices GINI, bem como quanto a outras métricas, como expectativa de vida ao nascer e número de médicos por 1000 habitantes, se posicionam abaixo do Brasil e, claro, muito abaixo dos países mais ricosSenão vejamos. A média de IDH da OPEP é 0,708, o IDH brasileiro é 0,792, acima de 10 dos 14 membros/ex-membros da OPEP. Para os EUA, é 0,944 e para a Noruega (o maior deles), é 0,963. No que diz respeito à expectativa de vida, a média da OPEP é 68,28 (72,53 para o Brasil, que supera metade desses países, 78,37 para os EUA e 89,73 para Mônaco, o país-campeão, quase nonagenário). No que diz respeito à proporção de médicos na população, o Brasil, com 2,06, possui quase o dobro em relação à média da OPEP (1,06), bate quase todos os países da Organização (exceto Catar e seus 2,22) e aproxima-se dos EUA (2,30). Claro, ficam todos bem abaixo de Cuba e seus 5,91 médicos por 1000 habitantes. O índice GINI, que indica mais igualdade à medida em que ele diminui, é o único quesito em que os países da OPEP (média de 41,9) superam o Brasil (somos um dos países mais desiguais do mundo, com 56,99). Ainda assim passam longe da Dinamarca e seus 24,7. É evidente que associar exportação de petróleo a níveis elevados de desenvolvimento, bem-estar social e qualidade de vida carece de sentido.

O texto aponta, então, para o argumento dos recursos financeiros (algo que, como mostrei, não pode ser utilizado a priori, pois há outros valores para além dos dólares. O que dizem é que "com as descobertas das jazidas do pré-sal, as estimativas para as reservas nacionais de petróleo cresceram de 8 bilhões de barris, por volta de 2006, para algo entre 60 bilhões e 70 bilhões, atualmente. Ao colocar esses números na ponta do lápis, Segen calcula que tais cifras representariam uma receita de US$ 4 trilhões para o país, levando-se em conta o preço atual (US$ 100) do barril de petróleo. Ou seja, é um montante similar ao valor corrente do Produto Interno Bruto (PIB) nacional de R$ 4,143 trilhões, em 2011". Ora, o faturamento com a exploração dessas reservas, portanto, equivalem ao faturamento em 30 anos caso se substituísse 10% das florestas por soja.

Mas o que os "especialistas" e a SBPC, por meio do seu veículo parecem esquecer é um conjunto de aspectos óbvios: 

1. Esses trilhões de dólares não vão beneficiar, em sua maioria, o povo brasileiro. Além de, na lógica privatista de FHC, a Petrobrás (que, em si, já não é inteiramente pública, mas de capital misto) ter perdido o monopólio de exploração, os royalties brasileiros são de apenas 15%. Como se pode verificar no Global Oil and Tax Guide, este valor é pequeno mesmo para os padrões da América do Sul (considerando-se exploração de grande escala, o Peru cobra 20% em royalties, a Colômbia, 25%, a Argentina, 31,5%, a Venezuela 33% e o Chile - que trabalha com um "Contrato Especial de Operações para a Exploração de Hidrocarbonetos" ajustável - pode cobrar até 50%). Daí, os propalados R$ 4 trilhões já se resumem a R$ 600 bilhões em royalties, sendo que a "parte do leão" pode muito bem ficar com companhias como a Shell, que declarou interesse em arrebatar os blocos do pré-sal no leilão previsto para Novembro e se derramou em elogios ao governo.

2. A lógica da matéria do Jornal da Ciência é lamentavelmente imediatista e carece de qualquer solidez no trato da questão econômica. A Economia das mudanças climáticas é hoje um ramo em que avanços significativos têm sido estabelecidos, mostrando o quão fundamental é apostar imediatamente em mitigação (e já em certa medida, adaptação), a fim de que os custos econômicos, num prazo não muito distante, ultrapassem, em muito, os benefícios de curto prazo, podendo o clima chegar a um ponto em que adaptação deixa de ser possível. O bem conhecido Relatório Stern, em seu sumário, aponta algumas questões que não podem, de modo algum, serem ignoradas, deixando claro que o custo da inação é muitas vezes maior do que o de mitigação.

3. E, finalmente, o principal balanço que precisa ser feito hoje, globalmente, não é de dólares, mas de carbono. O 1º Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (na versão ainda de rascunho submetida à revisão pública) estabelece: "Segundo WBGU (2009), para que a elevação da temperatura tenha uma probabilidade de 67% de se manter abaixo de 2 graus, é necessário limitar as emissões a no máximo 750 bilhões de toneladas métricas anuais (750 Gt CO2) até 2050. Caso se decida ampliar esta probabilidade para 75%, as emissões lançadas na atmosfera devem cair a 600 Gt CO2. No capítulo 3 da contribuição do Grupo de Trabalho 3 (GT3) ao 4º Relatório do IPCC, este horizonte de redução é caracterizado como forte (em contraposição aos intermediários e aos menos ambiciosos) e sua concretização exige uma redução de nada menos que 80% no montante das emissões globais até 2050. Quanto mais tardio este momento de reversão, maior será a dificuldade de promover a descarbonização da economia mundial. Se o pico das emissões fosse atingido em 2011 o ritmo do declínio teria que ser de 3,7% ao ano para que se chegasse a uma situação não ameaçadora em 2050. Se o início for em 2015, este ritmo salta para 5,3% ao ano. Adiado para 2020, a velocidade do declínio terá que atingir 9% ao ano (WGBU, 2009).O alarmante é que, a se manterem os níveis atuais de emissões, este patamar de 750 Gt CO2 anuais seria atingido já em 2035, tornando muito mais difícil sua reversão.

- Não é minha culpa. Não fui eu quem fez o furo no barco
- Nós precisamos de tempo para discutir como consertar o buraco
- Mas primeiro precisamos ter certeza de que o barco está afundando
Em outro texto, de nossa autoria, mostramos claramente que as reservas não convencionais de combustíveis fósseis deveriam permanecer intocadas, o que inclui o pré-sal. 

Há coisas que não podem ser justificadas em nome de se "gerar riqueza" ou do "desenvolvimento", seja escravidão, trabalho infantil ou devastação das florestas, sejam a queima de mais de 1/5 das reservas fósseis convencionais ou uso das reservas não-convencionais.

Os números são claros, não mentem. Aceitá-los é a única postura racional possível. A SBPC precisa abandonar susceptibilidades e ilusões quanto à possibilidade de a C&T abocanhar uma fração da fração da fração dos recursos do petróleo. Precisa, sobretudo, honrando sua tradição, abrir debate franco, democrático e qualificado.





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