quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Para fugir de uma dupla roleta russa, um outro "Programa de Transição"?

Entre erros e acertos, o revolucionário russo
Leon Trótsky imaginou como estabelecer uma
ponte entre as lutas mais imediatas e uma
batalha de mais longo prazo. Era uma questão
de garantir sobrevida, quase de ganhar tempo.
Não, ele não se referia ao clima.
A roleta russa é um exemplo bastante claro de probabilidades. Uma bala em um cilindro com seis espaços nos dá uma chance em seis para um desfecho mortal (ou cinco chances em seis de sobrevivência). Algumas versões dão contas de que era um jogo cruel praticado pelo exército do czar russo (daí o nome) contra seus prisioneiros.

É inevitável, ao abordarmos a questão climática, que lancemos mão de uma abordagem probabilística do problema. Mas neste caso, queremos juntar a ela outro conceito, desenvolvido por um militante político revolucionário que, com bem mais certeza do que a "roleta", era russo (aliás, que combateu o czarismo na Rússia): Lev Davidovitch Bronstein, ou simplesmente Leon Trotsky.

"Trata-se de preservar o proletariado da decadência, da desmoralização e da ruína. Trata-se da vida e da morte da única classe criadora e progressista, e, por isso mesmo, do futuro da humanidade." Com esta frase, Trotsky defendia que era necessário travar imediatamente a luta por trabalho, contra o desemprego, contra a fome e que isso adquiria um caráter "transitório", isto é, de que necessariamente deveria se estabelecer uma "ponte entre suas (i.e., do proletariado) reivindicações atuais e o programa da revolução socialista", entre "programa mínimo e programa máximo", etc.

Com uma sensibilidade climática estimada em 3ºC, basta se-
guir a linha do meio para perceber que, a longo prazo, uma
concentração de CO2 (ou equivalente) de 350 ppm implica
em um aquecimento de 1ºC acima das temperaturas pré-in-
dustriais e que 450 ppm nos deve colocar, novamente a lon-
go prazo, mais de 2ºC acima, levando a riscos reais de
desestabilização irreversível do sistema terrestre.
A estabilização do clima para condições semelhantes àquelas em que a civilização humana floresceu e às quais a biota terrestre se adaptou requer o retorno das concentrações atmosféricas de CO2 ao patamar de 350 ppm, o que pode ser deduzido a partir do conceito de sensibilidade climático, como descrevi aqui e aqui, e que é uma meta defendida com plena fundamentação científica por James Hansen e colaboradores neste artigo.

Em 2013, no momento de pico do ciclo anual, ultrapassou-se a barreira de 400 ppm na concentração de CO2 e a média deste ano deve fechar em torno de 397 ppm. Há evidências suficientes para se afirmar que, em se ultrapassando a marca de 450 ppm, pode-se estar pisando no terreno do "não-retorno", ao se abrir a válvula de reservatórios de gases de efeito estufa para que parte do seu estoque seja lançado à atmosfera, multiplicando o efeito antrópico direto. É o que ocorre com o metano armazenado junto ao piso oceânico, na forma dos chamados "clatratos". É o que se dá quando se descongela o "permafrost" (solo congelado) e se expõe à decomposição a matéria orgânica nele guardado produzindo metano e CO2. É o que se pode ter como resultado do estresse, pelas altas temperaturas e elevada evapotranspiração, em vários biomas terrestres, como quando da vasta mortandade de árvores na Amazônia nas recentes secas de 2005 e 2010. É o que se obtém com o aumento da incidência de incêndios florestais associados a ondas de calor mais longas e mais severas, com mais emissões de CO2, vide os casos emblemáticos dos EUA e da Austrália.

Uma roleta russa "convencional" nos dá uma chance de
sobrevivência de 5/6. Seao invés de uma, forem colocadas
duas balas no cilindro, essas chances diminuem para 4/6, ou
2/3, a mesma que, estima-se, o planeta tem de permanecer
com aquecimento abaixo de 2ºC em se queimando 275 GtC.
Mas segundo estimativas do mais recente relatório do IPCC, o AR5, para que tenhamos mais do que 2 chances em 3 de evitar adentrar essa areia movediça do futuro, é necessário manter a grande maioria das reservas de carbono fóssil intactas, no subsolo. Em números mais precisos, fornecidos pelo Sumário do AR5 para formuladores de política (na página 25), somente 790 bilhões de toneladas (ou gigatoneladas) de carbono fóssil (GtC) poderiam ser lançadas na atmosfera para evitar ultrapassar o limite de dois graus, considerando, além do CO2, outras contribuições antrópicas para o clima, sendo que já emitimos, desde o início da revolução industrial, cerca de 515 GtC (equivalentes a 1888 GtCO2, ou seja, bilhões de toneladas de CO2). Isto nos deixa um balanço remanescente de 275 GtC (ou 1008 GtCO2) que pode ser extraído e queimado, mas ainda assim para que tenhamos "chances" de evitar riscos climáticos extremamente severos que não muito melhores do que um cara-ou-coroa e semelhantes às de sobreviver a uma roleta-russa "turbinada", com duas balas no cilindro! Até 2050, segundo o relatório "Unburnable Carbon" (UC), isto é, o "carbono que não pode ser queimado", essas emissões teriam de estar limitadas a algo entre 565 e 886 GtCO2.

Somente esta companhia detém re-
servas de carvão equivalentes a 1/4
do que pode ser queimado até 2050
sem comprometimento potencialmente
irreversível do clima global.
Isto em si significa uma contradição profunda com os interesses econômicos da indústria de combustíveis fósseis, coração da geração de energia para produção e transporte de mercadorias (incluindo não só os bens de consumo, mas também os meios de produção, ou seja, matérias primas a força de trabalho humana), afinal uma única companhia de carvão (a russa Severstal JSC) detém, como propriedade, reservas equivalentes a 141,6 GtCO2 (ou 1/4 do total permitido até 2050, considerando-se o limite inferior proposto pelo UC). Ou se preferirem, somente 6 companhias petroquímicas detém reservas equivalentes à mais de 1/3 desse limiar (Lukoil, Exxon, BP, Gazprom, Chevron, ConocoPhillips, Total, Shell, Petrobrás, Rosneft, ENI e Occidental Petroleum estão sentadas em cima de uma bomba de nada menos que 188,4 GtCO2 em petróleo e gás). Estes dados estão disponíveis aqui e mostram como um punhado extremamente reduzido de corporações controla o termostato do planeta e, com ele, o destino da humanidade e de grande parte da biota terrestre. É assustador, para dizer o mínimo. Requer que se tenha capacidade de agir contra os interesses dessas corporações.

Apesar de ser em outro contexto (1936, no caldeirão de tensão de disputas imperialistas que viria a explodir na forma da 2ª Guerra Mundial poucos anos mais tarde) e de entender que não se pode aplicar mecanicamente as mesmas premissas aos dias atuais, acredito que exista atualidade em pelo menos um aspecto importante da lógica de pensamento de Trótsky e que há uma analogia válida no presente, no que diz respeito não só à urgência e gravidade do problema mas também face ao receio de uma certa impotência diante da sua dimensão. Trotsky, claro, não se referia ao clima. Mas nós, aqui, sim. Hoje, eu diria que, na questão climática, se trata de preservar as gerações e as classes às quais caberá a continuidade da luta por justiça; de preservar as próprias condições materiais, climáticas e ambientais, para a justiça social, para o fim da fome e da indignidade. Precisamos construir uma plataforma de profunda transformação na estrutura social e na base produtiva em escala global, mas reconhecendo a enormidade dessa tarefa, precisamos, no mínimo, agir depressa a fim de garantir medidas mitigatórias, ao menos no sentido de ganhar tempo!

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