quinta-feira, 27 de março de 2014

De 400 ppm a Amarildo

Família de Amarildo Dias e Sousa 
9 de Maio de 2013: os instrumentos do observatório de Mauna Loa registraram, pela primeira vez desde que as medidas se iniciaram, uma média diária de concentração de dióxido de carbono (CO2) acima de 400 partes por milhão (ppm). 

14 de julho de 2013: Amarildo Dias de Sousa, brasileiro, ajudante de pedreiro, casado com Elizabeth Gomes da Silva, pai de seis filhos, desaparece, após ser detido pela PM na Favela da Rocinha. 

Como dois fatos tão distintos e aparentemente desconexos na verdade se articulam?


Além da proximidade de datas, há mais nessa história. E tem a ver com o atual estágio do capitalismo mundial. Como coloquei em texto recentemente publicado em nosso blog, tal sistema pretende (na verdade, depende de) um crescimento indefinido, resultando num aumento continuado da demanda por matéria-prima e energia. No campo, isso implica em expulsar comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais, etc., de suas terras, a fim de abrir caminho para a exploração de combustíveis fósseis, a mineração em geral, a construção de grandes barragens ou a expansão do agronegócio. Nas cidades, significa expulsão de comunidades pobres de regiões de interesse imobiliário, destruição de áreas verdes, intensificação das desigualdades, segregação social e repressão a movimentos contestatórios. Em ambos os casos, é evidente que a solução adotada pelas classes dominantes, por conta da pressa e da fome insaciável (e que cresce exponencialmente) da parte do "hamster impossível", é, cada vez mais frequentemente, a da força. 

À demanda de mais matéria e energia para o processo produtivo, segue-se o aumento na quantidade de rejeitos "metabólicos" (metais pesados, material radioativo, gases de efeito estufa, aerossóis, etc.). Dentre estes rejeitos, ainda que muitos dos outros sejam diretamente mortais, o aumento da concentração de CO2 é particularmente relevante, primeiro por seu efeito ser ubíquo, universal e de longo prazo (na verdade seu efeito não é sentido todo imediatamente; sua permanência levando a um desequilíbrio energético planetário com aquecimento crescente e aumento de temperatura posterior às suas emissões). Segundo, pelo ineditismo. As concentrações de CO2 se mantiveram quase constantes, com valores próximos a 280 partes por milhão (280 litros do gás para cada milhão de litros de ar) pelos mais de 10 mil anos compreendidos entre o final da última era glacial e o início da era industrial. Do século XIX para cá, cresceram, atingindo, nos últimos dois anos, valores que chegaram a ultrapassar as 400 ppm, aumento de mais de 40% e prova inequívoca de que o sistema Terra (biota continental, principalmente florestas, e oceano, mesmo com toda sua acidificação) não consegue processar emissões tão elevadas desse gás. Vale dizer que tais concentrações não foram tão altas em pelo menos cerca de 3 milhões de anos. Por último, e mais importante, pelas potenciais consequências no que diz respeito a alterações no clima da Terra.

Temos já debatido incessantemente em nosso blog como o excesso de gases de efeito estufa (e, em particular, o CO2) levam a um desequilíbrio energético no planeta, ao introduzir uma forçante radiativa. Também já debatemos extensivamente o quanto o sistema climático é sensível a esse desequilíbrio e o quanto isso se reverte não apenas no estado médio da atmosfera (por exemplo, nas temperaturas médias globais), mas sobretudo na mudança nas estatísticas de ocorrência de eventos extremos. Por fim, também já se mostrou claramente como os impactos de tais eventos são distribuídos de forma profundamente desigual.

Nesse contexto, as mudanças climáticas precisam ser uma pauta central da esquerda. Ao contrário do discurso romantizado do “capitalismo verde” (contradição em termos), não estamos todos “numa mesma nave”, a não ser que tal nave nos seja uma analogia dramática com o Titanic, que efetivamente se espatifou num iceberg enquanto a orquestra tocava, mas que contava com primeira, segunda e terceira classe; no qual existiam portões que impediam os passageiros da terceira classe de terem contato com os outros e que foram devidamente cerrados, para impedir o acesso dos pobres aos botes salva-vidas. Mas tampouco é admissível a lógica recuada, a ilusão reacionária no produtivismo e desenvolvimentismo e a fé cega na tecnologia (como se esta, em si, não guardasse valor de classe) de grande parte da esquerda. Lamentavelmente ignorante da materialidade do mundo, incapaz de reconhecer a necessidade de salvaguardar as próprias condições de subsistência da ampla maioria da população mundial (que precisa de água, comida, energia e segurança contra eventos extremos), objetivamente abre campo para concessões à burguesia. Como afirmei em texto de polêmica contra as posições de Igor Fuser quando este criticava o Greenpeace, caracterizo como “é preciso parar de crescer e desacelerar a locomotiva tresloucada do capital, arrancando a riqueza diretamente do punhado de bilionários que a controla, a lógica dessa esquerda envelhecida é a de que o banquete do capital deve se ampliar, (de)predando o ecossistema global de forma ainda mais brutal, a fim de que caiam mais migalhas no chão! Ao invés de colaborarem na construção da necessária insurgência contra o poder do capital, contra as corporações, contra a indústria de combustíveis fósseis e o sistema financeiro; na prática se voltam contra as futuras gerações, contra os povos tradicionais, contra os pequenos agricultores, contra o contingente cada vez maior de refugiados climáticos e ambientais.”

A questão climática é, assim, uma questão de classe, de uma ponta à outra: na origem, pela desigualdade das emissões (somente 4 companhias – Chevron, Shell, Exxon e BP - são responsáveis por uma em cada 30 moléculas de CO2 na atmosfera!) e nos impactos. É uma questão crucial para a classe trabalhadora, pois mitigar e frear a crise climática é pré-condição para que não herdemos da burguesia uma Terra em ruínas. Ademais, é impossível “queimar combustíveis fósseis a favor dos trabalhadores”. Só a burguesia, ensandecida que é, se dá ao luxo de explorá-los e queimá-los “como se não houvesse amanhã”, quando sabemos – o que discutiremos em seguida – que queimá-los até o fim é garantia segura de que não haverá! Uma "revolução" que se limite a mudar as relações (jurídicas) de propriedade, retirando os meios de produção da condição de propriedade individual para coletiva para mim não passa de uma "reforma radical". É preciso ir além, atacando as relações de feticihização e alienação e, além de suprimir o aparelho de Estado atual, há que se substituir o aparelho produtivo atual por outro em consonância tanto com a sustentabilidade do metabolismo entre a sociedade humana e o resto na natureza (vencendo a alienação em relação a ela) quanto com a necessária superação das relações alienadas entre humanos.

ABIN (ou o SNI da ditadura militar repaginado) colaborou
com o Consórcio Belo Monte na espionagem das atividades
do Movimento Xingu Vivo.
Ora, mas a expansão recente do capital, já mencionada, além de engendrar uma crise ecológica sem precedentes, é pautada pelo recrudescimento da violência, particularmente a de Estado. No Canadá, o grande capital ganha acesso a novas terras para expansão da extração de minérios e estabelecimento de grandes hidrelétricas para atender à demanda de aumento da geração de energia somente ao romper o acordo secular com as “first nations” (as primeiras nações) e que praticamente limitou a ocupação branca original a uma faixa relativamente estreita próxima à fronteira dos EUA. No Brasil, grandes barragens e agronegócio se unem na tentativa de expulsar populações ribeirinhas e tribos indígenas de suas terras, inviabilizando seus modos de vida tradicionais. E estes resistem com a própria vida, crescendo sem parar a lista de assassinados por latifundiários ou por forças repressoras do Estado (que, aliás, através da ABIN, não se furtou em cooperar na espionagem das atividades do Movimento Xingu Vivo, ao lado do Consórcio Belo Monte!). Nas grandes cidades de quase todo o mundo, não há como a construção civil e a especulação imobiliária abrirem novas fontes de lucro sem ser removendo populações pobres e destruindo áreas verdes! O mercado do medo (mistura apodrecida de mídia desumanizadora e que mercantiliza e banaliza a violência com o setor de segurança privada) financia e dá suporte a uma política deliberada de militarização. Mas a hipertrofia das forças repressoras de Estado (maiores, melhor equipadas e mais brutalizadas e violentas), claro, nem de longe se destina ao fim proclamado, mas se volta fundamentalmente para conter qualquer traço de resistência anti-sistêmica e para agir efetivamente a favor do capital nos processos de “higienização social” que este reivindica. Ivan Tenharim, Amarildo, Nísio Guarani-Kaiowá, Cláudia... O capital espremido pela sua própria necessidade insensata de crescer, como serpente que não cabe mais na velha pela, se expande de forma violenta. Impõe, como nos velhos processos de invasão da América pelos europeus, a ocupação de novos espaços e a apropriação de recursos que, para se tornarem acessíveis, requerem a destruição (inclusive) física dos que vivem sobre eles.

A ocupação da frente do hotel onde veio a se realizar o leilão
do Campo de Libra (pré-sal), arrebatado pelo consórcio da
Petrobrás com a Shell, a Total e duas empresas chinesas, é um
dos inúmeros exemplos de como as forças de repressão de
Estado se colocam muito claramente a serviço da expansão
capitalista em sua etapa atual.
De um lado, a reedição do genocídio indígena nas Américas e os ataques a populações tradicionais nos países andinos (inclusive patrocinados por governos com posições não alinhadas aos centros do imperialismo, como o caso do Equador), no Brasil, na África, no Sul da Ásia e nos países da Oceania, etc. Do outro, a política crescente de encarceramento dos pobres e negros nos EUA e no Brasil, o extermínio da juventude e dos pobres na periferia das grandes cidades. São ambas, portanto, manifestação de um mesmo fenômeno. A urbanização, no contexto atual, é um traço marcante da atual fase de desenvolvimento capitalista (Há um século, 2 em cada 10 pessoas habitava a zona urbana e nos anos de 1990 isso ainda representava menos de 40% da população global, mas em 2010, mais da metade das pessoas já habitava as zonas urbanas e, conforme projeções da ONU, isso crescerá para 60% em 2030 e 70% em 2050) e amplifica a desigualdade, segregação e concentração dos conflitos nas cidades, ao mesmo tempo em que amplia, territorialmente, os conflitos fora delas. Isto tudo liga Amarildo aos celulares chineses e à soja transgênica invadindo a Amazônia, como as mineradoras e petroquímicas, e todas estas aos índios mortos... e estes à ocupação do Ártico e... E que liga tudo a 400 ppm de CO2 na atmosfera. Usando o termo da etnia Hopi, quis se chamar Antropoceno, mas mostrou ser Koyaanisqãtsi, palavra que, na respectiva língua, significa “vida maluca, vida em turbilhão, vida fora de equilíbrio, vida se desintegrando, um estado de vida que pede uma outra maneira de se viver". 

Não é algo meramente contingencial,
num contexto de expropriação dos
pobres, dos trabalhadores do campo
e da cidade, dos indígenas e demais povos
tradicionais, a morte de Cláudia, Amarildo,
dos caciques Nísio Guarani-Kaiowá e
Ivan Tenharim.
Crise ecológica e recrudescimento da violência organizada pelo Estado, mesmo nos regimes burgueses ditos "democráticos", estão umbilicalmente unidas, como produto inevitável do crescimento capitalista (a primeira) e como único meio possível para assegurá-lo (a segunda). Ou se detém a fúria expansionista do capital (e isso implica em rever as próprias noções produtivistas-desenvolvimentistas incrustadas em boa parte do pensamento "de esquerda"), ou secas e cacetetes, enchentes e balas de borracha, furacões devastadores e repressão em massa se abaterão, ao longo deste século, com mais e mais frequência sobre a "terceira classe do Titanic".

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