segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Eólicas: para quem, para quê, como?

Eólicas no Ceará seguem no sentido oposto ao esperado em
relação às renováveis: promovem conflitos com as comuni-
dades costeiras, devastam dunas e aterram lagoas, um enor-
me desserviço, inclusive à causa da busca de tecnologias
que podem ajudar a nos livrar do impasse fóssil.
Há poucos dias, uma pessoa muito querida, minha "filhota acadêmica" Juliana Oliveira, publicou a foto ao lado, que acredito tenha sido tirada lá pelo litoral de Trairi, que tem as belas praias de Mundaú, Flecheiras, Guajiru... Juliana trabalhou comigo no seu mestrado, avaliando precisamente a possível influência da variabilidade climática interanual sobre a geração eólica. Concluiu que relações bem conhecidas entre o estado dos oceanos tropicais e a chuva sobre o norte do Nordeste (que se concentra em poucos meses do primeiro semestre) também aparecem em relação aos ventos. Anos com El Niño no Pacífico e/ou "dipolo positivo" no Atlântico (a grosso modo, quente ao norte e frio ao sul), geralmente secos, tendiam produzir ventos mais intensos no primeiro semestre, acontecendo o contrário em anos com La Niña e/ou "dipolo negativo" (quem tiver curiosidade, o trabalho está acessível neste link). A expectativa de trabalhos como esse, claro, era o de subsidiar a implantação de fontes de energia renováveis em nossa região, mas...


As renováveis strictu sensu (solar, eólica, maremotriz), em
amarelo, são uma gota numoceano fóssil. São pequenas,
inclusive se comparadas à hidroeletricidade e nuclear.
Triste, melancólica ironia, que sem a prevalência do interesse público sobre o lucro, as energias
renováveis não cumprem o que poderia ser seu papel, de servirem ao mesmo tempo como fonte de energia em um sistema produtivo de zero carbono (e, portanto, mecanismo protetor do clima) e como meio de democratização e descentralização da produção energética (reduzindo perdas, aproximando-a do usuário e até servindo para distribuir renda, como no caso da solarização doméstica). Em geral, elas apenas se somam, se sobrepõem ao sistema energético vigente, atendendo a parte da demanda crescente de energia imposta pelo grande capital, sem substituírem, como deveria ser o caso, as fontes fósseis e a energia nuclear. Mais do que isso, o crescimento da demanda energética é muito maior do que o tímido crescimento das energias renováveis, sendo perceptível que o uso de carvão, petróleo e gás não tem parado de crescer. A implantação da solar e eólica tinha de se dar em oposição às fontes fósseis, não como penduricalho!

Acesso à praia fechado? Como ficam as comunidades que de-
pendem da pesca artesanal, do extrativismo? Não é bem isso
que eu denominaria "bons ventos"
Mas aqui no litoral nordestino parece que se conseguiu algo sui generis. Além dessa característica geral que citei (a insuficiência da adoção de fontes renováveis, sem tocar no problema do crescimento do capital), há algo em relação aos parque eólicos que simplesmente não vi em outros lugares (em tempo, Júlio Holanda, em seus comentários reproduzidos ao final, mostra que esses conflitos ocorreram em outros locais, sempre com características de racismo ambiental contra comunidades pobres): o profundo e acirrado conflito socioambiental, aliado à completa irresponsabilidade ambiental na sua implantação. O conflito do Cumbe é emblemático, mas há vários outros casos, em geral com destruição de dunas, aterramento de lagoas e danos às populações da zona costeira; uma brutalidade injustificada, quando - com pouquíssima perda de fator de capacidade (razão entre energia efetivamente gerada e máxima energia nominal da turbina) - um deslocamento para o tabuleiro costeiro e a alocação dos parques em locais com muito menor impacto e com um mínimo de conflitos seria possível.

Parte da explicação para isso eu pude ouvir da boca de um empresário do ramo, quando de debate comandado por Ruy Lima, em que o contraponto era apresentado pelo ambientalista Julio Holanda. O dito empresário insistia em dizer que "não havia impactos" nas eólicas, o que é falso, por óbvio, afinal toda e qualquer ação nossa, particularmente qualquer fonte de eletricidade, tem impactos. Esse discurso de "zero impacto" escamoteava justamente a necessidade de a eólica no Ceará se adequar a um devido zoneamento costeiro e a uma lógica de políticas públicas (infelizmente ausentes) de controle e de imposição de normas ambientais rigorosas, até para que a energia eólica pudesse efetivamente merecer a alcunha de "energia limpa" e mesmo ganhasse a simpatia das comunidades do litoral!

Mas outra peça do quebra-cabeça veio se juntar a posteriori. Motivado por conta do que veio à tona a partir da operação Marambaia e a recente condenação do responsável pela empresa Geoconsult, fui verificar a lista de clientes da tal empresa. Além de gigantes como as térmicas do CIPP (e praticamente todas as termelétrica s recentemente implantadas no Ceará!), a Siderúrgica e outros monstrengos no próprio Pecém (incluindo o seu emissário submarino de efluentes...), a lista de clientes do setor eólico é enorme, aqui e no Rio Grande do Norte (Em tempo, a .

As dunas e lagoas poderiam ser poupadas. Dessa forma, as
eólicas não podem ser consideradas "limpas".
Ora, tendo como ponto de partida o relatório simplificado (portanto, menos rigoroso já de antemão) elaborado por uma empresa envolvida em fraudes, o que se espera? Relatórios sem compromisso com a realidade, ignorando danos ambientais e conflitos sociais, feitos provavelmente num cruel e irresponsável Ctrl+C / Ctrl+V em que as únicas coisas a se mudar de um para o outro eram o nome do empreendimento e a localidade...

Nenhuma forma de energia, portanto, é "limpa" a priori. Algumas podem ser. A solar é a que mais facilmente o é, pois pode ser gerada a partir dos tetos das residências, com benefícios para os consumidores domésticos, mas mesmo ela tem impactos de mineração, transporte de material etc. (evidentemente muitíssimo menores do que os estragos promovidos pela indústria de combustíveis fósseis!). A eólica e as energias das ondas e das marés também podem, mas há impactos locais que precisam ser dimensionados corretamente e minimizados a fim de que possam ser efetivamente instaladas (ou, nas palavras de Daniel Cunha, "os impactos da energia fotovoltaica e da eólica são controláveis - com tratamento de efluentes líquidos, zoneamento adequado, etc.; já na queima de fósseis, a captura de carbono na queima é inviável"). É aí que o capital, em sua sanha agressiva, descuidada e apressada, evidentemente atropela tudo isso, em nome do lucro.
Comunidades rejeitando a energia eólica, cuja implantação se
dá subtraindo-lhes território e direitos e com prejuízos ao am-
biente local. Eólicas dão tiro no pé e prestam um enorme des-
serviço à necessária transição energética!

Ora, ao jogar comunidades inteiras contra a sua implantação, movida de maneira mesquinha pelo lucro mais fácil, o setor de energia eólica termina soprando seus ventos na vela da indústria fóssil. Por ser mais evidente, mais visível, com impactos mais diretos, ela encobre os danos muito mais profundos e irreversíveis a essas mesmas comunidades da exploração e queima de petróleo e carvão. Em escala global, com reflexos em cada ecossistema do planeta, a acidificação oceânica está transformando aos pouco os mares do planeta - do qual dependem intrinsecamente as comunidades que vivem da pesca artesanal - em verdadeiros desertos, e isso se acelerará brutalmente, caso as emissões de CO2 não sejam contidas. Em escala do estado, ao mesmo tempo que as eólicas se espalham, uma única empresa do ramo fóssil (uma termelétrica a carvão) concentra aproximadamente 12% das emissões de CO2-equivalente no Ceará e responde por até 6% do consumo total de água doce (informações detalhadas neste texto)! Além disso, praticamente todo o litoral foi loteado para exploração de petróleo no leilão de 2013, colocando as praias e a fauna marinha sujeita a uma catástrofe como a que devastou o Golfo do México (de responsabilidade da BP) e tantos outros vazamentos. Um inimigo invisível, muito mais poderoso, muito mais perigoso, se escondendo à sombra dos aerogeradores...

Precisamos zerar as emissões de carbono de maneira extremamente rápida. Precisamos abandonar, em marcha acelerada, os combustíveis fósseis. Precisamos das energias renováveis. Mas precisamos que elas sejam a energia correta da forma correta, a fim de que possam ser de fato limpas. Como Midas às avessas, o desejo incontrolável de lucros estratosféricos por parte do capital, as impede de servir como alternativa que interesse de fato à maioria da população, especialmente os setores mais pobres e vulnerabilizados. Sem tocar no ponto fundamental da hiperprodução, do hiperconsumo, da demanda energética imposta pelo crescimento capitalista, "renovável" não será sinônimo de "limpa". Daí, não basta reciclar o discurso; não se pode reciclar injustiças; há que se revolucionar a vida!
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P.S.: Seguem os pontos de um comentário, fundamental, do próprio companheiro ecossocialista Júlio Holanda, que valem a pena serem lidos. Refletem o tamanho do desserviço e descalabro.

1- É importante compreender que a lógica de incorporação das energias renováveis na matriz elétrica brasileira ocorre por vias da "complementariedade" e não da "substituição". Isso é diferente da Alemanha e Dinamarca, por exemplo, nesses países as energias renováveis surgem como bandeira do movimento antinuclear, onde as usinas nucleares foram fechadas para abertura de parques eólicos e solar. No Brasil ao mesmo tempo que há um crescimento acelerado da energia eólica (são mais de 600 projetos, alcançando 4% da matriz elétrica em menos de 4 anos!) há também um aumento previsto no PDE 2022 para os combustíveis fósseis, ao invés do que seria obvio que é a diminuição gradativa até chegar ao consumo zero, se de fato houvesse essa preocupação. Mas não é isso que ocorre. Além, é claro, da expansão do setor nuclear e termoelétrico previsto para os próximos anos. Por exemplo, depois de 9 anos uma usina termelétrica voltou a ser leiloada pela ANEEL nesse ano, junto com vários projetos de eólica. Recentemente foi noticiado a possibilidade de mais um projeto de térmica para o Ceará, etc. Isso é sempre explicado pela necessária "diversificação da matriz energética", uma noção muito frágil, imprecisa e que não tem resolvido o problema climático.  
2- Outra coisa é que a partir da década de 1980 tem ocorrido o processo de "ambientalização" no Brasil, que se caracteriza pela apropriação da questão ambiental por praticamente todos os órgãos do Estado, bancos, empresas e organizações sociais, envolvendo mudanças de linguagem e práticas. Com isso surgiu o que alguns autores chamam de Economia Verde, onde mudanças adotadas por “razões ecológicas” ocorrem apenas quando o empresariado vê possibilidades de fazer do “meio ambiente” uma nova oportunidade de negócios. Tudo em nome dos negócios. Quando se observa mais de perto quem são as principais empresas do setor eólico isso fica mais claro. Ou são empresas do "setor energético", como elas se denominam, que investem desde a solar e eólica até as termelétricas (o caso do Eike era emblemático que tinha no Ceará a solar Tauá e a térmica no Pecém, tem também a Petrobras que tem 5 parques eólicos, mas esses dois casos não são exceções, tem sido a regra) ou então por grandes empresas do setor econômico, principalmente petrolífero. Na lista da Forbes com as maiores companhias (WallMart, Shell, PetroChina, Chevron, Toyota, Volkswagem, BP, etc), por exemplo, todas elas, sem exceção, possuem parques eólicos, investem ou tem ativos no setor de renováveis. Mas o que a gente tem analisado é que isso não tem representado uma mudança de perspectiva e concepção dessas grandes empresas, mas sim, esses investimentos ocorrem na lógica da ambientalização que comentei. Hoje o setor eólico é um dos mais lucrativos, seguro e rentável dentro do setor elétrico (isso de acordo com agentes do próprio setor que tive a oportunidade de entrevistar). 
3- Com relação aos conflitos, temos registros não só aqui no Ceará, mas RN, BA e em outros países como México, Portugal e Espanha. A lista de problemas é grande, como você já mencionou, os principais estão relacionados à questão hídrica, por conta da terraplanagem da dunas que diminui a infiltração das águas para o lençol freático, que já temos relatos de estarem muito abaixo do normal mesmo para períodos de secas prolongadas (além do uso excessivo na instalação, com uso de 400.000 litros de água por semana em alguns casos). Tem a questão social também que é muito relatado, a desterritorialização e a inviabilização do modo de vida tradicional das comunidades locais, por diferentes motivações, mas principalmente pela privatização dos espaços comuns, da criação do "território do medo", onde as pessoas ficam impossibilitadas de transitar pelas terras, de nadar nas lagoas, etc. Sem contar os casos de agravamento de problemas sociais, como a questão das drogas, prostituição, gravidez indesejada, etc. Penso que a questão dos conflitos não está associado exclusivamente ao local onde são instalados os parques, mas sobretudo à própria lógica com as quais eles são introduzidos, através do que se tem denominado de "monoculturização ambiental e social do espaço" que é absolutamente incompatível com as racionalidades, práticas e saberes que já habitam essas localidades. Em outras palavras, o problema não é "só" porque os parques se concentram na zona costeira, mas há relatos de conflitos na região de tabuleiro, por exemplo, e de conflitos envolvendo a etnia Tapuia-Kariri na Ibiapaba por conta dos parques eólicos que estão migrando para as Serras. Muda o local, mas a lógica (grandes parques, concentrados, sob a lógica do capital) é a mesma. 
4- Por fim, na dissertação tenho polemizado com o uso do termo "energia limpa", sobretudo para os casos de energia eólica. Acho importante compreender a origem do termo, seus limites para aplicar à esses casos e principalmente como ele acaba invisibilizando os conflitos na zona costeira e criando um falso consenso favorável. Ele surge nos primeiros relatórios do IPCC e depois é incorporado pelos órgãos do Estado, bancos e empresas, como um termo absolutamente reducionista circunscrito à noção da "não emissão de GEE para a atmosfera". De fato, nessa perspectiva, a energia eólica é sim uma energia limpa. Porém, esse termo dá uma noção de algo imaculado, sem problemas, sem conflitos, sem impactos negativos, uma noção moral, como algo bom, que é o contrário do "sujo", que é o ruim, o que deve ser banido, etc. Na lógica das emissões de GEE isso é verdadeiro, mas para por aí, não é possível de aplicação e generalização para a técnica em sí. Esse termo não incorpora, desde sua origem, as noções de conflitos ambientais e sociais, as dimensões econômica e política, as relações desiguais de poder e as desigualdades de acesso e uso dos bens naturais que tem gerado conflitos. Acaba que seu uso tem invisibilizado essas dimensões, tirando do espaço público o debate mais de fundo que é o de modelo de desenvolvimento, matriz elétrica e energética. Acaba que esse debate se despolitiza e a bandeira histórica dos movimentos sociais, que foi tema do Fórum Social Temático desse ano "Energia para que? Para quem? e Como?" se limitam apenas à última pergunta. Perguntar o "como" é central de ser feita, mas não basta, precede se questionar e politizar as outras duas.
O que concluo? Nenhuma termelétrica! Não mais petróleo, nem carvão! Eólica e solar? Sim, ou melhor, depende. Precisa ser controlada pelo povo, implantada respeitando comunidades e ambiente, de forma democrática e transparente!

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