segunda-feira, 25 de maio de 2015

Acorrentados. Mas até quando?

Chiara D'Angelo segura o cartaz: "Salve o Ártico".
Chiara Rose D'Angelo é o nome da ativista que prendeu-se à âncora do "Arctic Challenger", navio de apoio às operações que a Shell está iniciando no Ártico, após ter contado com o sinal verde do governo dos EUA, num movimento injustificável por parte de Obama. Este havia sinalizado poucos dias antes que encararia a questão climática de frente, inclusive contando com o apoio de um humorista para bater no negacionismo climático. Mas da comédia veio a tragédia: ao autorizar a Shell a explorar petróleo no Ártico,  apenas mais uma vez frustrou inteiramente o movimento ambientalista, e desta vez com um requinte de traição.

Leão marinho resgatado em meio a vazamento da empresa
Plains All American Pipeline LP, em Santa Bárbara. O vaza-
mento, de 2500 barris de petróleo, ameaça um santuário da
biodiversidade marinha e ocorreu próximo do terrível acidente
de 1969, quando 100 mil barris vazaram. O mamífero veio a
morrer, apesar dos esforços dos biólogos em salvá-lo.
O nome do navio ao qual Chiara (seguida depois de outro ativista) se acorrentou é de uma triste ironia: "Desafiador do Ártico" guarda duplo sentido, tanto em inglês quanto em português. E ao interpretarmos como o navio que desafia o próprio Ártico provavelmente não estamos de acordo com o sentido pretendido pelos que o batizaram, mas certamente ficamos muito mais próximos do sentido real. A perfuração de petróleo naquela região, de ventos intensos, difícil acesso, gelo flutuante, é um ataque direto ao seu frágil ecossistema. Um vazamento de petróleo como o que assistimos há poucos anos no Golfo do México (a explosão da plataforma da BP) ou mesmo como o que se deu há poucos dias na costa da Califórnia, nas proximidades de Santa Bárbara, pode ter efeitos que, se classificarmos como devastadores ainda assim possivelmente estaríamos caindo num eufemismo.

Maior responsável pelo aquecimento global, a mais poluidora
e mais tóxica, a indústria de combustíveis fósseis é também a
mais poderosa. Seu domínio precisa chegar ao fim.
Presa à corrente do Arctic Challenger, Chiara se tornou uma metáfora de toda a humanidade. Mas ao contrário de Chiara, que lá se posicionou por sua vontade, a humanidade é mantida refém, acorrentada pela indústria de combustíveis fósseis, pelo poderio quase infinito desse setor, que é o coração energético do sistema capitalista. Romper esses grilhões é a grande tarefa colocada. É uma tarefa de grande monta, que demanda organização, mobilização e disposição de luta. É uma luta contra gigantes, sabemos.

400 mil marcharam em Nova Iorque em defesa do clima. Quem
disse que não é possível construir um movimento climático de
massas? Quem acha que os povos originários, os mais pobres
e mais vulneráveis e os mais conscientes em nossa sociedade
permanecerão assistindo passivamente a indústria de combus-
tíveis fósseis prosseguir impunemente com seus planos de
destruição? Não morreremos educadamente!
Como já mostramos em texto anterior, as petroquímicas constituem a maior parte das empresas com maior faturamento do mundo. Das 6 maiores no ranking da Forbes, nada menos que 5 são do ramo. Como mostrou recentemente o periódico britânico "The Guardian", a partir de dados absolutamente insuspeitos do Fundo Monetário Internacional, tamanho poder econômico se sustenta em grande parte graças a uma relação de total parasitismo. Como um dreno violento, a indústria de combustíveis fósseis suga nada menos do que 10 milhões de dólares a cada minuto em subsídios, de onde a estimativa é que 2015 se encerre tendo ela se apropriado de nada menos do que U$ 5,3 trilhões, ao receber isenções de impostos, ser favorecida com garantia de preços e infraestrutura pública e principalmente ao não arcarem minimamente com os custos da poluição que promovem.
O dinheiro que chega na forma de subsídios a um punhado de
corporações (a indústria de combustíveis fósseis) é cinco vezes
maior do que todo o PIB da África e supera os gastos mundiais
com a saúde.

São números impressionantes. Afinal, representam quase 7% do PIB mundial (estimado pelo FMI, em 2014, em U$ 77,3 trilhões). Esses 5,3 trilhões de dólares representam mais do que a soma das economias de nada menos do que Rússia (U$ 1,86 trilhões), Canadá (U$ 1,79 trilhões) e Austrália (U$ 1,44 trilhões), respectivamente 10ª, 11ª e 12ª economias do mundo. É mais de cinco vezes o PIB inteiro da África (de pouco mais de um trilhão de dólares anuais). É mais do que o investimento global em saúde. Parece evidente que tais companhias não se sustentariam de pé se não fossem por esses subsídios (repetimos, calculados de forma insuspeita pelo FMI); que a maior parte, senão a totalidade dos seus lucros vem de uma transferência direta de recursos públicos e da sua recusa a arcar com os custos dos danos gigantescos que ela promove ao ambiente, à saúde humana, ao clima global, enfim à vida.

O orçamento militar global é maior do que o que seria neces-
sário investir para uma transição energética segura até uma
matriz de emissão zero.
Nas palavras de Nicolas Stern, "esta importante análise quebra o mito de que os combustíveis fósseis são baratos, mostrando quão grande são os seus custos reais. Não há qualquer justificativa para esses enormes subsídios aos combustíveis fósseis, que distorcem os mercados e prejudicam a economia, particularmente dos países mais pobres". Mais do que isso, o recurso público que é literalmente transferido para as contas dessas corporações poderia ser usado para rapidamente promover uma transição para uma matriz com emissão zero de CO2 e, portanto, tais subsídios são uma adaga no pescoço do clima; uma criminosa sabotagem a qualquer tentativa séria de limitar o aquecimento global aos já perigosos 2°C que são a meta que aparece na maior parte das propostas acenadas de acordos internacionais com vistas a evitar uma catástrofe climática completa.

À feiúra dos desastres patrocinados pela indústria fóssil, opõe-
se a beleza e a diversidade do movimento climático. Povos
indígenas estão entre os principais protagonistas.
Alguns cinicamente dizem que o custo de uma transição energética rumo a uma matriz 100% renovável é elevada. Nada mais falso, primeiro porque o custo da inação será obviamente muito maior. Segundo, porque bastariam 12 trilhões de dólares em investimentos em renováveis até 2030 para que estas, substituindo fontes fósseis, nos mantivessem dentro de uma rota capaz de reduzir as emissões e salvaguardar o clima, conforme estimativas do IPCC em 2011. Mais: segundo a IEA (International Energy Agency), seriam necessários 44 trilhões de dólares para assegurarmos a transição energética até 2050, o que é uma grande quantidade de dinheiro somente na aparência, pois equivale a pouco mais de 8 anos de subsídios à indústria de combustíveis fósseis. Outra comparação que pode ser feita é com os gastos militares. Dado que estes chegam a U$ 1,776 trilhões por ano, caso eles fossem zerados, ao longo desses 35 anos seriam poupados nada menos do que 62 trilhões de dólares, 18 trilhões a mais do que o necessário. 

Uma causa que é a maior de todas: eis o motivo para um velho
cientista da NASA, hoje aposentado, ser preso em protesto em
frente à Casa Branca.
Exatamente por ser tão abertamente parasitária, sendo em essência o seu próprio negócio destrutivo e indefensável, cinismo é o que não falta no comando dessas companhias. Sem esquecer de Graça Foster, até pouco tempo presidente da Petrobrás com seu célebre "Acho lindo carro na rua, estou faturando. Acho lindo engarrafamento", pérolas impressionantes saem da boca dos diretores das principais corporações do ramo petroquímico com enorme frequência. John Watson, CEO da Chevron, em entrevista à Forbes, respondeu, ao ser indagado sobre a possível influência do movimento em defesa do clima e de alternativas energéticas que "tudo o que temos na vida devemos aos combustíveis fósseis" e que principalmente nos países em desenvolvimento "o caminho da prosperidade é através da energia acessível dos combustíveis fósseis". Tony Hayward (CEO da BP), diante da catástrofe no Golfo do México foi capaz de dizer que "o impacto ambiental deste acidente será muito, muito modesto", enquanto Ben van Beurden (CEO da Shell): "Iremos [perfurar no Ártico] até o nível que nós achamos que é aceitável" (quando sabemos que qualquer coisa é "aceitável" para esses devastadores profissionais). Claro, quem continua hors concours é Rex Tillerson (CEO da ExxonMobil e sua célebre resposta ao repórter que perguntou se a filosofia dele era "perfura, meu bem, perfura": "minha filosofia é ganhar dinheiro e se perfurar me dá dinheiro, é isso que vou fazer".  Eles efetivamente tratam a atmosfera como "esgoto de carbono a céu aberto", como bem colocam Carlos Rennó e Lenine na música "Quede Água?".

Lideranças indigenas brasileiras na COP20
Não se deve esperar a menor racionalidade da parte da indústria fóssil que não seja a racionalidade voltada para seus próprios lucros (e para os lucros de seus acionistas, para os hipersalários de seus diretores, para os dividendos inimagináveis dos bancos que nessas companhias investem). Mesmo aquelas (como a Shell e a BP) que flertaram com pequenos investimentos "verdes" (modestas incursões nos terrenos das energias renováveis) recuaram nessas iniciativas tímidas de maneira vergonhosa. Se não a destruirmos, ela concluirá a desestabilização do ecossistema global. Como uma locomotiva desgovernada irá ao precipício com todos nós, caso permaneçamos a ela acorrentados.

Guerreiros de povos originários do Pacífico se preparam para
bloqueio contra navios com carga de carvão na Austrália
Mas há indícios de que a resistência à sanha voraz e devastadora da indústria de combustíveis fósseis começa a crescer. Quanto mais essa indústria assassina radicalizar seus planos destrutivos, demonstrações mais radicais do que a de Chiara D'Angelo, reações desesperadas até, aparecerão. E renderão, mesmo que ao final não vençamos e o colapso de um sistema climático superaquecido prevaleça, cenas de rara beleza, como o cerco de caiaques à plataforma da Shell na orla de Seattle; como as ocupações e bloqueios de ambientalistas e indigenas contra o famigerado oleoduto de Keystone XL; como os atos de desobediência civil diante da Casa Branca, que levaram inclusive à prisão do renomado cientista da Nasa, James Hansen; como o bloqueio de guerreiros do Pacífico contra os navios de carvão da Austrália; como a manifestação de lideranças indígenas (incluindo lideranças do Brasil) durante a COP20; como a marcha de quase 400 mil ativistas climáticos em Nova Iorque, que reuniu indígenas e comunidades atingidas e figuras as mais diversas como Leonardo de Caprio e Bill McKibben, principal liderança da 350.org, como a escritora Naomi Klein e a parlamentar socialista de Seattle Kshama Sawant.

Bloqueio contra a construção do oleoduto de Keystone XL,
que passaria por terras indígenas e pequenas e médias fazendas
do interior dos EUA
A luta pelo clima e pelo ambiente é, hoje, a mais genuinamente anticapitalista de todas. Vai no cerne material, no coração energético, no fluxo insustentável de matérias primas e no consumo desmesurado de energia, no consumismo, no neo-extrativismo das corporações. Vai contra a base material que sustenta o sistema financeiro e na defesa direta das condições essenciais de manutenção da vida. O capital continua oposto ao trabalho, é claro (vide que qualquer "ajuste" ou política de "austeridade" implica na negação imediata de direitos da classe trabalhadora). Mas ou se reconhece o antagonismo entre o monstro que cresce exponencialmente e a "natureza" cíclica e limitada da Natureza ou não se conseguirá construir força transformadora no século XXI.

"Caiaqtivistas" cercam plataforma da Shell em Seattle
Politicamente, a decisão é: construiremos uma força política que ofereça uma saída social organizada à crise ecológica global, ou deixaremos a solução da maior contradição de todas (Capital X Natureza) nas mãos das forças desta última? Aviso neste caso: a gente sabe quem vai ganhar, no final. Só que não vai ser bonito se resolvermos, pela nossa inércia, permanecer do lado do perdedor.  O capital não tem chance e a decisão que cabe a nós, em última instância, é se interrompemos conscientemente seu parasitismo ou permanecemos presos a ele, enquanto os anticorpos da natureza o eliminam, junto conosco (ou pelo menos com a maior parte de nós e nossa civilização). Por enquanto permanecemos presos às correntes da indústria de combustíveis fósseis. Mas podemos e precisamos nos livrar desses grilhões. A beleza das manifestações já em curso contra o desastre fóssil aponta o caminho. 


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