terça-feira, 14 de julho de 2015

Que horizonte? (Reflexões sobre Plutão, Vênus e Terra)

Carl Sagan (1934-1996)
"Olhem de novo esse ponto. É aqui, é a nossa casa, somos nós. Nele, todos a quem ama, todos a quem conhece, qualquer um sobre quem você ouviu falar, cada ser humano que já existiu, viveram as suas vidas. O conjunto da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas confiantes, cada caçador e coletor, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e camponês, cada jovem casal de namorados, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada professor de ética, cada político corrupto, cada 'super-astro', cada 'líder supremo', cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali - em um grão de pó suspenso num raio de sol. A Terra é um cenário muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, na sua glória e triunfo, pudessem ser senhores momentâneos de uma fração de um ponto. Pense nas crueldades sem fim infligidas pelos moradores de um canto deste pixel aos praticamente indistinguíveis moradores de algum outro canto, quão frequentes seus desentendimentos, quão ávidos de matar uns aos outros, quão veementes os seus ódios. As nossas posturas, a nossa suposta autoimportância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no Universo, são desafiadas por este pontinho de luz pálida. O nosso planeta é um grão solitário na imensa escuridão cósmica que nos cerca. Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há indícios de que vá chegar ajuda de outro lugar para nos salvar de nós próprios. A Terra é o único mundo conhecido, até hoje, que abriga vida. Não há outro lugar, pelo menos no futuro próximo, para onde a nossa espécie possa emigrar. Visitar, sim. Assentar-se, ainda não. Gostemos ou não, a Terra é onde temos de ficar por enquanto. Já foi dito que astronomia é uma experiência de humildade e criadora de caráter. Não há, talvez, melhor demonstração da tola presunção humana do que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim, destaca a nossa responsabilidade de sermos mais amáveis uns com os outros, e para preservarmos e protegermos o 'pálido ponto azul', o único lar que conhecemos até hoje." (Carl Sagan)

A Venera 7, em dezembro de 1970, realizou
o primeiro pouso bem sucedido em outro
planeta. Resistiu por 23 minutos antes de o
o calor e à pressão a incorporarem ao corpo
de Vênus, num misto de derretimento e
esmagamento. Foi dela a primeira transmissão
feita da superfície de outro planeta.
Há mais de 4 décadas, graças às sondas da missão soviética Venera, começamos a desvendar os segredos de Vênus e de seu impressionante efeito estufa, capaz de transformar um planeta que de resto teria quase tudo para ser semelhante à Terra num inferno onde neva metal, nuvens de ácido sulfúrico cobrem eternamente o céu e chumbo e estanho escoam líquidos na superfície. Hoje, as informações sobre Vênus, possíveis graças a missões espaciais da então URSS e dos EUA nos anos 60 a 90 fazem parte do corpo de conhecimentos que nos permite entender o efeito estufa terrestre e são uma peça importante do alerta - que já era lançado por Carl Sagan e James Hansen há mais de 30 anos - sobre os gravíssimos riscos que a elevação da concentração de CO2 em nossa atmosfera traz para nós.

Quando acompanho a New Horizons, sonda lançada há mais de 9 anos e que finalmente chegou ao seu objetivo - passar por Plutão - me entusiasmo, tanto pela curiosidade científica (que acho que é o que me sobra de criança) quanto pelas possibilidades de que mais conhecimento sobre o Cosmos nos forneçam mais luz na luta em meio ao caos daqui. Quando vejo insinuações de que isso não seria uma prioridade, lamento, pois os cortes que os republicanos querem promover sobre a NASA (menos no programa espacial, é verdade, pois até fins militares este pode ter, mas sobretudo no programa de clima e mudanças climáticas da instituição) em nenhum momento são destinados à saúde, educação, moradia, auxílio aos povos mais pobres e historicamente esmagados pelo imperialismo. Pelo contrário, menos dinheiro para a Ciência geralmente tem implicado mais dinheiro diretamente para os bolsos das corporações (como em todo programa de "austeridade" e "ajuste fiscal") e, ao mesmo tempo, mais aposta no obscurantismo, na deseducação e no analfabetismo científico que alimentam o fundamentalismo religioso.

Em cores realçadas, Plutão e seu satélite/parceiro,
Caronte, mostram que sua superfície tem
composição química diversificada. Cada
gota de conhecimento que extraímos do
nosso oceano de ignorância sobre o cosmos
imenso deveria servir de ferramenta e
inspiração para o cuidado com nosso
"Pálido Ponto Azul".
Hoje era um dia para celebrar o flyby da New Horizons junto a Plutão, um descortinar de novos conhecimentos e, por óbvio, de novos horizontes, o sentido próprio do seu nome de batismo. Enquanto isso, porém, estamos tendo de travar um combate duro e desigual e, da parte do adversário, totalmente desleal, contra o negacionismo climático, que resolveu lançar nova cruzada para sabotar qualquer possibilidade de êxito na COP21, em Paris, no final do ano, plantando novo factóide (a ideia de que entraremos numa "mini-era do gelo"). Na verdade, derrotar o negacionismo (e a toda a máquina fossilista que o alimenta) é parte fundamental do combate a todo o obscurantismo e condição essencial para que tenhamos - novo ou velho - algum horizonte pela frente.

Ao fim e ao cabo, fico mesmo a pensar se, dessa cruzada louca, ecocida contra o ecossistema que nos sustenta (e por isso mesmo, também suicida), movida a lucro e consumo, o que restará de nós serão as sondas espaciais que lançamos por aí, a esperarem eternamente pelo improvável encontro com uma inteligência capaz de decifrar-lhes os mistérios, de formular hipóteses sobre nós, e de pensar - como hoje olhamos para Vênus - na tragédia de um efeito estufa exagerado na Terra, triste pináculo de um Antropoceno-Koyaanisqãtsi. E só o que me tira desse pensamento é o vislumbre de que, ao contrário das sondas, depois de abandonadas no espaço, nossa trajetória, nossa rota, ainda pode ser mudada. Ainda.

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