segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A "outra" bomba de carbono: nossa dieta. Parte I - Devorando a Terra

No Mandir, debatemos o papel da nossa
dieta nas mudanças do clima global
Como parte das iniciativas do tipo "roda de conversa" que estamos denominando de "Entrando no clima", no último dia 30 de Setembro estivemos no Restaurante Mandir, para debater o vínculo entre alimentação e as mudanças climáticas. Além da minha fala, houve intervenções do Vaikuntha Prasada, nosso anfitrião, do Roberto Araújo e da Neila Santos, o primeiro especialista em gastronomia e a segunda vinculada à agroecologia, que abordaram respectivamente aspectos cultural e social da produção de alimentos. Aproveito esta postagem para repassar um pouco da discussão que fizemos por lá e ampliá-la em alguns aspectos.

Como coloquei no título, apesar de pouco falada, a alimentação é a nossa segunda "bomba" de carbono. A primeira, claro, é a de energia (incluindo transportes) e diz respeito à queima de combustíveis fósseis, tema amplamente explorado em nosso blog. A produção de alimentos e a nossa dieta não pode ser vista fora do contexto da estrutura de propriedade do campo, da lógica predatória do capital em busca do lucro acelerado e do âmbito de um sistema produtivo carbointensivo (isto é, altamente emissor de gases de efeito estufa) e, sobretudo na questão da alimentação, igualmente hidrointensivo (ou seja, altamente consumidor de água).

HÁ MUITO MAIS DO QUE SOMENTE CO2

Representação da molécula de metano, cujo efeito estufa
é 28 vezes mais potente do que o do CO2, segundo o 5º
relatório 
do IPCC na escala de 100 anos (sem considerar
feedbacks do ciclo do carbono). Fonte da figura:

www.ces.fau.edu
O primeiro ponto tem a ver com o fato de que o CO2 não é o único gás de efeito estufa de vida longa (isto é, que permanece por um longo período de tempo na atmosfera sem reagir quimicamente ou ser consumido por algum sumidouro) que é emitido a partir de atividades humanas. Além dele, há o metano (CH4), o óxido nitroso (N2O) e uma enorme variedade de gases industriais (como diversos halocarbonetos e o hexafluoreto de enxofre). Todos aprisionam calor na atmosfera e contribuem para amplificar o efeito estufa.

Cada uma dessas moléculas tem propriedades físicas diferentes e interagem com o infravermelho em diferentes comprimentos de onda e absorvendo maiores ou menores quantidades dessa radiação. Além disso, cada gás tem um tempo médio de vida na atmosfera próprio e, portanto, o período de tempo durante o qual cada um deles influencia o clima também é diferente. A fim de que se possa comparar diretamente a influência desses gases, usa-se o CO2 como referência, introduzindo-se o conceito de potencial de aquecimento global (GWP, da sigla em inglês global warming potential). O GWP é um número que diz quantas vezes determinado gás é mais ou menos poderoso do que o CO2 em armazenar energia na forma de calor. Por exemplo, a molécula de um gás que tenha um GWP igual a 3 exerceria um efeito estufa três vezes mais intenso do que uma molécula de CO2. Usualmente, adota-se a notação GWP-X, onde X representa a escala de tempo analisada, em anos.

Uma molécula de óxido nitroso (N2O) exerce um efeito estufa
265 vezes mais intenso do que uma molécula de CO2, segundo
5º relatório do IPCC na escala de 100 anosFonte da figura:
www.ces.fau.edu
O metano (CH4) é emitido a partir de diversas fontes, incluindo as "emissões fugitivas", isto é, gás que escapa quando da exploração de petróleo e gás natural. A decomposição de matéria orgânica comumente leva a emissões de CH4, mas é particularmente relevante a chamada "fermentação entérica", isto é, a fermentação do rúmen no aparelho digestivo de herbívoros como caprinos, ovinos, bubalinos (búfalos) e principalmente, pela combinação do numeroso rebanho com o porte do animal, bovinos. Por sua vez, o óxido nitroso (N2O) é gerado pela decomposição de diversas substâncias no solo, a partir de resíduos de lavouras, esterco e, com cada vez maior importância, fertilizantes químicos.

Forçantes radiativas associadas a diferentes
componentes, segundo o 5º Relatório do IPCC.
Fonte: IPCC, 2013
A boa notícia para o clima é que metano, óxido nitroso e a legião de gases industriais são pouco abundantes na atmosfera. Enquanto o CO2 está muito próximo de 400 ppm, ou partes por milhão (contra um valor pré-industrial de 280 ppm), as concentrações de CH4 e N2O são, respectivamente, da ordem de 1800 ppb ou partes por bilhão (mais do que o dobro do valor pré-industrial), e 326 ppb. Já os demais gases tipicamente tem concentrações estimadas em partes por trilhão. A má notícia... é que todos eles são gases de efeito estufa muito mais poderosos do que o CO2. Numa escala de 100 anos, o potencial de aquecimento global (GWP-100) do metano, sem considerar feedbacks, de acordo com o AR5 do IPCC, é 28. Ou seja, nessa escala de tempo ele funciona como um gás de efeito estufa 28 vezes mais poderoso do que o CO2. Na escala de 20 anos (GWP-20), esse valor é bem maior, chegando a 84, diminuindo ao longo do tempo porque o metano, ao se oxidar, é lentamente consumido na atmosfera terrestre. O óxido nitroso? Seu GWP-100 é nada menos que 265. E o CF4, um dos halocarbonetos de efeito estufa mais poderoso possui um GWP-100 de 6630!

Assim, a definição do potencial de aquecimento global permite que façamos a equivalência de emissões dos demais gases de efeito estufa como se fossem emissões de CO2. Por exemplo, na escala de 100 anos, a emissão de cada kg de metano equivale à emissão de 28 kg de CO2 ou, em outras palavras, a 28 kg de CO2e (CO2-equivalente), conceito que usaremos de agora em diante.

Vale ressaltar que, no final das contas, pela abundância, o CO2 termina sendo gás produzido por emissões humanas com maior efeito. Mas em virtude do elevado potencial de aquecimento global, os demais gases não podem ser desprezados. A forçante radiativa (ou forçamento radiativo), ou seja, a quantidade de energia acumulada na forma de calor por unidade de área e de tempo associada ao CO2 é 1,82 W.m-2 (Watts por metro quadrado). A contribuição do metano, por sua vez, é de 0,48 W.m-2 (a grosso modo, 1/4 da do CO2), a do óxido nitroso, 0,17 W.m-2 e a dos halocarbonetos (todos eles combinados) é de 0,36 W.m-2. Ou seja, somando-se CH4, N2O e gases industriais, chega-se a 1,01 W.m-2, quase 36% do efeito estufa associado às emissões antrópicas.

A AGROPECUÁRIA COMO GRANDE EMISSORA

Emissões do setor de agropecuária e mudança no uso da terra
nas últimas décadas, por subsetor (Fonte: IPCC, 2013).
O 5º Relatório do IPCC agrupa a agropecuária com o uso da terra e estima que globalmente esse segmento responda por emissões da ordem de 10 a 12 bilhões de toneladas de CO2e por ano (GtCO2e), ou pouco menos de um quarto das emissões globais, distribuídas em diversos subsetores. Como mostra a figura ao lado, a contribuição dominante ainda é a do CO2 emitido pela mudança no uso do solo, isto é, desmatamento, embora sua importância tenha decrescido na última década em relação à anterior. De qualquer modo, chega a ser impressionante que ainda estejamos desmatando para dar lugar a atividades agrícolas, quando - seja pela estabilidade climática, pela disponibilidade hídrica, pela biodiversidade e pelo ciclo de nutrientes, etc., - a preservação do que resta dos biomas é condição essencial para que a própria produtividade agrícola se mantenha. Fica evidente que nosso "modo de comer" é incompatível com o clima ao obrigar que os maiores estoques de carbono do planeta abram lugar para a produção de alimentos, ao invés de tê-la convivendo com eles.

Aqui embaixo, sai floresta, entra pasto. Em cima, na atmosfera,
entram CO2 do desmatamento e CH4 da fermentação entérica
Ao desmatamento, somam-se a fermentação entérica, a decomposição de resíduos, dejetos, fertilizantes químicos e outros processos, fazendo com que em 2010 as emissões de outros gases que não o CO2 pela agropecuária somassem o equivalente a 5,2 a 5,8 GtCO2e anuais, entre 10 e 12% das emissões antrópicas totais. Do conjunto das emissões apenas da produção agropecuária (isolando a mudança no uso do solo e não incluindo emissões de energia e transporte vinculadas ao setor), a fermentação entérica é o fator dominante (32-40% do total de emissões da agricultura), seguida da decomposição do esterco (15%) e de fertilizantes sintéticos (12%), com o cultivo de arroz vindo na sequência (11%). Nosso "modo de comer" é incompatível com o clima ao termos uma produção desbalanceada de gases que se acumulam na atmosfera e aquecem o planeta, ao contrário do equilíbrio necessário dos fluxos de matéria no Sistema Terra.

Por fim, há todo o processo que envolve a demanda de energia na produção, o transporte de alimentos de um lado para o outro do planeta, geralmente com emissões massivas, o que pode muito bem ser resumido na frase de Esther Vivas, "comemos petróleo, ainda que não pareça", neste artigo, em que ela desenvolve o tema. Nosso "modo de comer" é incompatível com o clima ao consumirmos alimentos cuja pegada de carbono continua a crescer mesmo após a própria produção.

Quantos quilômetros a sua comida viajou? Quanto CO2 ela
emitiu no processo?
É evidente que uma transição alimentar é necessária, assim como uma transição energética. É preciso apontar a perspectiva de uma alimentação produzida de forma socioambientalmente justa, através da agricultura camponesa, familiar e da agroecologia, para além da simples lógica dos "orgânicos" que embora evitem o uso de uma série de produtos químicos nocivos à saúde humana, podem não ser sustentáveis em vários aspectos importantes, inclusive no que diz respeito à força de trabalho. É preciso alinhar-se ao horizonte do consumo de alimentos sazonais e profuzidos localmente, com mínimo deslocamento e mínima embalagem, que dialogue com os aspectos da cultura e com o debate do sofrimento animal. É - em função da extrema urgência - sobretudo iniciar o trabalho de redução geral das emissões associadas a toda a cadeia produtiva dos alimentos. Óbvio, é necessário começar por algum lugar. Os artigos seguintes serão dedicados à continuidade desse debate. Afinal, não podemos seguir simplesmente desmatando para expandir a fronteira agrícola, emitindo mais gases na produção alimentícia do que possa ser reprocessado pelo sistema Terra, tampouco movendo indiscriminadamente de um lado para o outro alimentos que foram produzidos com enorme consumo de energia. Não podemos seguir, enfim, devorando o próprio planeta.

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