sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Balanço da COP21. Parte II: Urgência não pode ser apenas uma palavra

Neste artigo dou prosseguimento à análise iniciada no anterior, a Parte I, em que centrei no aspecto das contradições entre o objetivo anunciado de limitar o aquecimento global a uma anomalia de temperatura "muito abaixo de 2°C" ou mesmo de no máximo 1,5°C acima dos valores médios pré-industriais e a falta de definições claras de como cumprir tal objetivo. Como mostrarei, apesar de proclamadas a urgência e a gravidade da situação, o Acordo de Paris não é condizente com o evidente quadro de emergência climática e com a necessidade de compensarmos pelo enorme atraso no início das medidas necessárias para evitar um caos climático completo.

URGÊNCIA URGENTÍSSIMA

Como vimos mostrando em diversos textos em nosso blog, existe uma urgência objetiva em atacar as causas da crise climática, cujas oportunidades de solução tornam-se cada vez estreitas. Como mostro neste texto, para que o planeta pare de aquecer em algum momento, é preciso que as concentrações de gases de efeito estufa se estabilizem em algum valor, o menor possível. Mas para isso, já que esses gases se acumulam na atmosfera, é necessário que as emissões sejam zeradas. Hoje, as emissões somente de CO2 estão acima de 35 bilhões de toneladas de CO2 por ano só considerando queima de combustíveis fósseis e produção de cimento, o dobro do que eram há 40 anos.

O motivo da "urgência urgentíssima", portanto, é nítido. Deixamos as emissões crescerem demais, construímos uma base "produtiva" gigantesca para atender à hiperdemanda de consumo, esmagadoramente dependente da queima de combustíveis fósseis como fonte de energia. A cada ano que adiamos o início das mudanças na matriz elétrica e de transporte, essas emissões, mesmo quando não crescem de um ano para o outro, se mantêm em níveis muito elevados, o suficiente para acumular 2 ppm de CO2 (ou mais) por ano numa atmosfera que já contém 400 ppm. A mensagem que a comunidade científica envia há anos é direta: quanto mais alto esse pico de emissões chegar, mais pesados terão de ser os esforços para puxá-lo para baixo; quanto mais demorarmos para iniciar esse processo, por conta do efeito cumulativo, menor será a janela de tempo que teremos para fazê-lo. Isso, se essa janela não se fechar, simplesmente.


PERDEMOS O BONDE E SE NÃO CORRERMOS, NÃO O ALCANÇAREMOS NA PRÓXIMA ESTAÇÃO


Trajetória de emissões dos quatro principais cenários
analisados pelo IPCC na preparação do AR5. O RCP2.6
é o único deles que nos mantém com boa margem de
segurança abaixo de 2°C e permite que 1,5°C se mante-
nha como objetivo tangível. O problema? As emissões
desse cenário já foram ultrapassadas... Figura adaptada
de Sanford et al. (2014).
Com efeito, somente um dos 4 principais cenários analisados pelo IPCC nos dá boas chances de mantermos o aquecimento global abaixo de 2°C e probabilidade não desprezível de não ultrapassar 1,5°C. Dos chamados RCPs (Representative Concentration Pathways), o RCP2.6 é o único para o qual a maior parte dos modelos climáticos prevê um aquecimento entre 1,3 e 1,9°C ao final do século XXI (vide figura), com indícios de estabilização das temperaturas médias globais em maiores não muito acima dessa faixa.

Os problemas com esse cenário? Primeiro, ele precisava de uma inflexão nas emissões desde 2010, desde aquele ano interrompendo a lógica de crescimento contínuo do uso de combustíveis fósseis, e isso não aconteceu. Não há máquina do tempo que nos permita voltar atrás. Mesmo que os indícios recentes apontem para uma queda nessa taxa de crescimento, os 4-5 anos de atraso já colocaram as emissões num patamar acima daquele de quase estabilização entre 2010 e 2020 assumido no RPC2.6. Não basta pensarmos agora em estabilizar as emissões nesse patamar acima, pois as concentrações de gases de efeito estufa, particularmente o CO2, são o resultado cumulativo das emissões (para os que são familiares com cálculo diferencial e integral, podemos dizer, a grosso modo, que as concentrações são a integral das emissões). Daí, sequer é suficiente rebaixarmos, até 2020, as emissões até um nível em que reencontremos a trajetória de emissões do RCP2.6. Mesmo porque o aquecimento global é o efeito cumulativo do forçamento radiativo, ou forçante radiativa, desequilíbrio energético a grosso modo proporcional às concentrações (novamente evocando o cálculo, concluímos é como se o aquecimento fosse a integral da integral das emissões).

A conclusão é que seria preciso chegar em 2020 com emissões abaixo daquelas estabelecidas no cenário RCP2.6, a fim de que o tempo perdido seja compensado e permanecêssemos ligados, por alguns fios de esperança, à possibilidade de 1,5°C. Afinal, o efeito extremamente daninho dos preciosos 5 anos já perdidos, com emissões chegando a níveis incompatíveis com a estabilização do clima, com concentrações de CO2 e demais gases de efeito estufa atingindo níveis que não deveriam ter sido atingidos tão cedo, já está sendo percebido por todos os lados. Isso só será possível se agora, já, começarmos a cortar vigorosamente as emissões (na figura, isso significa passar a seguir a linha cinza tracejada), sem direito ao "platô", isto é, sem direito à transição de um período de uma década de emissões quase estacionadas em torno de 9 PgC/ano (33 bilhões de toneladas de CO2 anuais) e tendo de mirar imediatamente numa redução global, em 2020, para níveis de emissões de similares aos do ano 2005, algo em torno de 8 PgC/ano ou 29 bilhões de toneladas de CO2.

Lembramos também que a partir de 2020, o RCP2.6 implica em uma queda muito rápida nas emissões, sendo que, para os países desenvolvidos - como indica o Dr. Kevin Anderson, do Centro Tyndall - a velocidade dessa queda teria, a essa altura, de ser maior do que a da queda de emissões verificadas na finada União Soviética quando esta entrou em colapso. Daí, mesmo começando um corte severo nas emissões desde já, só seria possível reencontramos a trajetória do RCP2.6 por volta de 2030, quando as emissões devem cair para algo em torno de 6,5 PgC/ano ou 24 bilhões de toneladas de CO2. Cada adiamento implica que cortes mais violentos precisam ser aplicados logo em seguida e que o retorno à trajetória relativamente segura do RCP2.6 só pode ser recuperada num momento ainda mais posterior. Chega um limite, e esse limite é agora, no final desta década e início da próxima, em que será impossível, por mais drásticas que sejam as medidas e mais rápidas sejam as ações tomadas, manter-se com qualquer chance mínima de evitar um aquecimento maior que 1,5°C e até mesmo de segurar o trem descarrilado em temperaturas 2°C acima dos níveis pré-industriais.

Nenhuma nova termelétrica fóssil, substituição em massa da
fonte energética para eletricidade e transporte, cronograma
de fechamento em massa de unidades termelétricas nas
próximas duas décadas: menos do que isso não constitui
um conjunto sério de medidas para cumprir o objetivo
estabelecido no Acordo de Paris.
É aí que a linha do tempo das decisões práticas saídas da COP21 se desconecta das escalas de tempo da Física do Clima. Apesar de reconhecer (novamente na parte inicial) a "necessidade urgente de cuidar do divórcio entre o efeito agregado das propostas de mitigação de Paris em termos de emissões anuais de gases de efeito estufa até 2020 e trajetórias de emissões agregadas consistentes com manter o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2°C" (mencionando o limite de 1,5°C em seguida), o que o Acordo traz? Nada, absolutamente nada que seja de fato coerente com o necessário. É como se tivéssemos perdido o bonde e precisássemos desesperadamente apanhar um táxi para pegá-lo na próxima estação, mas estivéssemos ainda escolhendo a combinação mais adequada entre meia e cueca para colocar na mala!

Por fim, no contexto do RCP2.6, é preciso que no máximo em 2070, as emissões líquidas (emissões menos sequestro) cheguem a zero, passando a negativas  a partir de então, algo somente possível através de reflorestamento em grande escala, para não ficarmos dependentes de tecnologias de CCS (carbon capture and storage, isto é, captura e armazenamento de carbono). Em virtude do atraso em iniciarmos o processo de inflexão e inversão na tendência das emissões, é provável que tenhamos de pensar em chegar a uma economia global de zero carbono antes desse prazo.

NÃO BASTA RECONHECER A INSUFICIÊNCIA DAS CONTRIBUIÇÕES VOLUNTÁRIAS

O mecanismo de Contribuições Pretendidas Nacionalmente Determinadas (Intended Nationally Determined Contribution, ou INDCs) através das quais os países voluntariamente apresentam metas de redução das emissões, tem se mostrado absolutamente insuficiente diante deste quadro, resultante da mais irresponsável procrastinação coletiva jamais vista na história humana. O próprio documento da COP21 "reconhece com preocupação" que "os níveis de emissões agregadas de gases de efeito estufa em 2025 e 2030 resultantes das contribuições pretendidas nacionalmente determinadas" não estão dentro de cenários compatíveis com o objetivo de limitar o aquecimento "bem abaixo de 2°C", chegando a mencionar o balanço de carbono apropriado.

A saída é uma só: deixar a grande maioria
dos combustíveis fósseis no chão!
Dentre as medidas que podem ser consideradas positivas no Acordo de Paris está o instituto que prevê a revisão, a cada 5 anos, das metas de redução das emissões, que essencialmente permite que "continuemos no jogo", isto é, que abre a possibilidade de o movimento climático manter uma pressão nos níveis de local a global (incluindo, claro, o nível nacional, em que as INDCs são elaboradas). Mas ainda assim, por conta do atraso até agora, somente em 2020 é que as Partes, isto é, os países signatários do Acordo, são convidadas a "comunicar suas estratégias de desenvolvimento de baixas emissões" para médio e longo prazo. Por mais que isso pareça um tempo relativamente curto para a elaboração, nas escalas das nações, dessas estratégias (até porque somos de acordo de que este seja um processo participativo e democrático, envolvendo amplamente as maiorias sociais, especialmente os setores mais vulneráveis e atingidos), nós já sabemos, como colocado anteriormente, que o único tipo de planejamento razoável nas escalas nacionais a médio e longo prazos é aquele compatível com a queda rápida nas emissões até zerá-las antes de 2070. Por que essa mensagem simples, nítida, bem conhecida cientificamente não foi explicitamente colocada?

Mostrar-se "preocupado" que as INDCs não dão resposta suficiente para o cumprimento do objetivo de conter o aquecimento global "bem abaixo de 2°C" não basta, especialmente quando sabemos o que precisa ser feito para resolver o "divórcio" que não é nada menos do que entre essas contribuições pretendidas e... a própria realidade! Percebe-se que o linguajar genérico e as constatações pela metade não nos servem mais. O que se quer com meias palavras e meias medidas? Um "meio desastre"?

CAVAMOS, CAVAMOS, CAVAMOS... MAS NÃO ENCONTRAMOS "COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS"

Qual o único lugar do Planeta Terra em que você pode cavar e cavar e cavar sem encontrar "combustíveis fósseis"? Sim, é no Acordo de Paris. É no mínimo estranho que o acordo internacional supostamente destinado a evitar uma catástrofe climática global e irreversível omita aquilo que é simplesmente a principal causa reconhecida das alterações no clima.

No preâmbulo, as "renováveis" são citadas somente uma vez, no parágrafo da parte inicial do texto do Acordo que fala da "necessidade de promover acesso universal a energia sustentável nos países em desenvolvimento". Mas em nenhum momento elas aparecem - como se deveria esperar - como via de substituição das fontes fósseis não apenas nestes países mas principalmente nos países mais desenvolvidos.

No Artigo 5, o Acordo chega a falar de "incentivos positivos para atividades voltadas a reduzir emissões de desflorestamento e degradação florestal", ou seja, menciona uma das causas importantes do aquecimento global explicitamente (o desflorestamento), mas sabendo-se que esta não é a maior delas. Globalmente, a mudança no uso do solo, com 10,0% das emissões de gases de efeito estufa (em CO2-equivalente) aparece em sétimo lugar, atrás da geração de eletricidade, dos processos industriais, dos transportes, da agropecuária (principalmente fermentação entérica), de prospecção/extração/refino/circulação de combustíveis fósseis e do setor residencial e comercial.

Não mencionar explicitamente a principal fonte de emissões
de CO2 (a queima de combustíveis fósseis) e citar de forma
tímida a saída representada pelas renováveis não é compa-
tível com um compromisso sério de limitar o aquecimento
global a "bem menos do que 2°C acima dos níveis pré-
industriais"
Daí, é particularmente preocupante que, no Artigo 3 do Acordo, o termo "descarbonização" (um termo que indicaria ainda que de forma não totalmente explícita a necessidade de abandonar os combustíveis fósseis como fonte de energia) tenha sido preterido, primeiro em função do termo mais genérico "neutralidade" e, depois, por "equilíbrio entre emissões antrópicas por fontes e remoções por sumidouros de gases de efeito estufa" e, pior, numa genérica "segunda metade do século".

Essa omissão imperdoável em mencionar a principal causa do aquecimento global, os recuos sucessivos na força do termo adotado para definir o que se espera do balanço de carbono, a timidez em trazer à tona, como solução para a crise climática, as energias renováveis, especialmente solar, só demonstram o quanto as corporações mantêm seu poder de mando e um forte controle sobre aspectos-chave das negociações climáticas. É mais um motivo para ficarmos com muitas pulgas atrás de nossas orelhas, pois isso sugere que a aposta das grandes potências e das corporações, à medida em que se demonstre que nos afastamos mais e mais do caminho relativamente seguro do RCP2.6 com o adiamento do fim da indústria fóssil, seja numa combinação de CCS com geoengenharia. Isto é, que fiquemos reféns de supostas soluções (ou pseudo-soluções tão ruins quanto o problema, como é o caso da geoengenharia) que não estão ainda ao alcance e que, na melhor das hipóteses, teremos de pagar (provavelmente muito caro) por elas.

Mas como veremos na Terceira Parte de nossa análise, soma-se - à já patente fragilidade do Acordo de Paris - a precariedade dos recursos financeiros, dos mecanismos de transferência de tecnologia e do chamado mecanismo de "perdas e danos", algemas de um sistema econômico que aprisionou nosso sistema climático numa rota de desastre.


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